Por Roberto S. Kahlmeyer-Mertens **
Após
um jejum de quase 30 anos, a obra literária de Dalcídio Jurandir
(1909-1979) começa a ser revisitada com fôlego renovado. À margem das
editoras comerciais, até a data de seu centenário de nascimento, o
escritor que durante as primeiras décadas do século XX foi lido,
reconhecido e admirado pelas gerações de Graciliano Ramos e Jorge Amado,
esteve durante todo este tempo relegado ao nicho acadêmico ou submetido
ao rótulo de regionalista. Dalcídio Jurandir escreveu onze romances,
dez dos quais integram o que ficou conhecido como o Ciclo do
Extremo-Norte. Contendo títulos como “Marajó” (1947), “Três casas e um
rio” (1958), “Belém do Grão-Pará” (1960), o conjunto destas obras
arrebatou em 1972 o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de
Letras.
As criaturas de Marajó em prosa trabalhada e lavrada
O
primeiro título deste conjunto — que o filósofo e crítico literário
Benedito Nunes chamou de “ciclo romanesco” — é “Chove nos campos de
Cachoeira”. O livro, que também é considerado o primeiro romance
amazônico moderno, recebe agora uma nova edição. Com grande força e
intensidade narrativa, e marcado pela influência da segunda geração do
romance modernista no Brasil, esta obra faz mais do que pintar quadros
da vida singular de quem a escreveu. Dalcídio Jurandir descreve o
horizonte amazônico a partir de vivências regionais, o contexto humano e
geográfico com a pluralidade de suas imagens, suas elaborações
linguísticas típicas, a cultura e, até mesmo, as concepções
sociopolíticas que perpassam esta mundividência.
“Chove nos
campos de Cachoeira” foi originalmente publicado em 1940. A obra se
ambienta em Cachoeira do Arari, lugarejo no qual habita Alfredo,
personagem que se identifica paradigmaticamente com a gente que povoa a
Amazônia paraense rural. O romance retrata com plasticidade a existência
humilde e agreste de personagens que são pequenos proprietários de
terra, campeadores, pescadores, barqueiros, empregados das fazendas,
enfim, a matéria humana que Dalcídio chamava carinhosamente de a
“farinha-d’água de meus beijus”.
No enredo, tem-se a ida do
menino Alfredo para a capital com a finalidade de dar prosseguimento aos
estudos. Os contrastes entre o interior e a metrópole, os costumes da
europeizada Belém frente aos da provinciana Marajó se fazem sentir na
trama que envolve tanto as memórias afetivas do narrador, quanto um
sentimento de pertença à terra marajoara. Destaque-se na referida
narrativa o capítulo “Caroço de tucumã”; neste, uma pequena semente de
palmeira nativa, que viajou com o pequeno protagonista desde Marajó,
ganha significação especial no romance. Longe do solo inundado de
Cachoeira na época de cheia, era na semente que o menino buscava a
segurança de quem o compreendesse e o animasse: “Sentia-se só, distante,
imaginando sempre. Só a bolinha tomava corpo de gente, era sua amiga.
Era o corpo da imaginação. Bolinha fiel e rica de fazer de conta!”. Mais
do que produto da imaginação e carência pueril, a semente de tucumã
faculta interpretações que o tomam como metáfora da semântica amazônica
que Dalcídio Jurandir, bem como Alfredo, seu alter ego, jamais deixou de
rever.
Nova edição corrigida e apontada pelo autor
A
presente edição de “Chove nos campos de Cachoeira” foi estabelecida a
partir de um exemplar da primeira edição com apontamentos marginais e
correções do próprio Dalcídio. A observância dos anseios do autor a
partir deste texto de referência permitiu a depuração do original que
constitui sua colação definitiva. As modificações são sensíveis, embora
nenhuma delas altere substancialmente a prosa dalcidiana. Se comparada
com a edição anterior (a crítico-filológica, caprichosamente organizada
pela pesquisadora Rosa Assis em 1998), notam-se pequenas alterações de
formulação e vocabulário; vez por outra, mudanças de pontuação reduzindo
longos períodos.
Mesmo com essas corrigendas, continuamos a ter em
“Chove nos campos de Cachoeira” o mesmo romance que garantiu a seu
criador o Prêmio Dom Casmurro, oferecido pela Editora Vecchi, a mesma
narrativa densa e fluente, a mesma essência e virtualidade que fazem com
que Gunter Karl Pressler, em um de seus ensaios, nos afiance a
autenticidade e universalidade do Romancista da Amazônia.