terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

RESENHA DE "CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA" DE DALCÍDIO JURANDIR

RESENHA DE "CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA" DE DALCÍDIO JURANDIR

Por Roberto S. Kahlmeyer-Mertens **
Após um jejum de quase 30 anos, a obra literária de Dalcídio Jurandir (1909-1979) começa a ser revisitada com fôlego renovado. À margem das editoras comerciais, até a data de seu centenário de nascimento, o escritor que durante as primeiras décadas do século XX foi lido, reconhecido e admirado pelas gerações de Graciliano Ramos e Jorge Amado, esteve durante todo este tempo relegado ao nicho acadêmico ou submetido ao rótulo de regionalista. Dalcídio Jurandir escreveu onze romances, dez dos quais integram o que ficou conhecido como o Ciclo do Extremo-Norte. Contendo títulos como “Marajó” (1947), “Três casas e um rio” (1958), “Belém do Grão-Pará” (1960), o conjunto destas obras arrebatou em 1972 o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.

As criaturas de Marajó em prosa trabalhada e lavrada

O primeiro título deste conjunto — que o filósofo e crítico literário Benedito Nunes chamou de “ciclo romanesco” — é “Chove nos campos de Cachoeira”. O livro, que também é considerado o primeiro romance amazônico moderno, recebe agora uma nova edição. Com grande força e intensidade narrativa, e marcado pela influência da segunda geração do romance modernista no Brasil, esta obra faz mais do que pintar quadros da vida singular de quem a escreveu. Dalcídio Jurandir descreve o horizonte amazônico a partir de vivências regionais, o contexto humano e geográfico com a pluralidade de suas imagens, suas elaborações linguísticas típicas, a cultura e, até mesmo, as concepções sociopolíticas que perpassam esta mundividência.

“Chove nos campos de Cachoeira” foi originalmente publicado em 1940. A obra se ambienta em Cachoeira do Arari, lugarejo no qual habita Alfredo, personagem que se identifica paradigmaticamente com a gente que povoa a Amazônia paraense rural. O romance retrata com plasticidade a existência humilde e agreste de personagens que são pequenos proprietários de terra, campeadores, pescadores, barqueiros, empregados das fazendas, enfim, a matéria humana que Dalcídio chamava carinhosamente de a “farinha-d’água de meus beijus”.

No enredo, tem-se a ida do menino Alfredo para a capital com a finalidade de dar prosseguimento aos estudos. Os contrastes entre o interior e a metrópole, os costumes da europeizada Belém frente aos da provinciana Marajó se fazem sentir na trama que envolve tanto as memórias afetivas do narrador, quanto um sentimento de pertença à terra marajoara. Destaque-se na referida narrativa o capítulo “Caroço de tucumã”; neste, uma pequena semente de palmeira nativa, que viajou com o pequeno protagonista desde Marajó, ganha significação especial no romance. Longe do solo inundado de Cachoeira na época de cheia, era na semente que o menino buscava a segurança de quem o compreendesse e o animasse: “Sentia-se só, distante, imaginando sempre. Só a bolinha tomava corpo de gente, era sua amiga. Era o corpo da imaginação. Bolinha fiel e rica de fazer de conta!”. Mais do que produto da imaginação e carência pueril, a semente de tucumã faculta interpretações que o tomam como metáfora da semântica amazônica que Dalcídio Jurandir, bem como Alfredo, seu alter ego, jamais deixou de rever.

Nova edição corrigida e apontada pelo autor

A presente edição de “Chove nos campos de Cachoeira” foi estabelecida a partir de um exemplar da primeira edição com apontamentos marginais e correções do próprio Dalcídio. A observância dos anseios do autor a partir deste texto de referência permitiu a depuração do original que constitui sua colação definitiva. As modificações são sensíveis, embora nenhuma delas altere substancialmente a prosa dalcidiana. Se comparada com a edição anterior (a crítico-filológica, caprichosamente organizada pela pesquisadora Rosa Assis em 1998), notam-se pequenas alterações de formulação e vocabulário; vez por outra, mudanças de pontuação reduzindo longos períodos.
Mesmo com essas corrigendas, continuamos a ter em “Chove nos campos de Cachoeira” o mesmo romance que garantiu a seu criador o Prêmio Dom Casmurro, oferecido pela Editora Vecchi, a mesma narrativa densa e fluente, a mesma essência e virtualidade que fazem com que Gunter Karl Pressler, em um de seus ensaios, nos afiance a autenticidade e universalidade do Romancista da Amazônia.

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